sábado, 28 de maio de 2011

Um lapso

Por longas veredas caminhei firme em vacilantes morros. Pedras, frias, nuas, belas foram postas aos meus pés e até elas me ajoelhei. Tão mais tão longe caminhei, que agora aqui voltei. Eis, abaixo, leitor nossa Realidade, primeiro poema de meu caderno que por tanto tempo deixei guardar a imperfeição que lhe compunha para só agora, derramada tanta tinta, encerrar e padecer em fios e luzes minha inspiração.

Realidade

Decifra-me...
                 ...Ou devoro-te.

Te masco, te cuspo
Te choro, te gozo
Te cago, te suo
Sou-te tu.

Matheus V.
15/04/11  

domingo, 19 de dezembro de 2010

As flores de plástico

    Terminara de colocar os talheres na bandeija junto à sopa. Sopa de miúdos, educado contorno para elevar de tripas o status dos corações de perú que lá boiavam. Exigência gastronômica que refletia-se no brilho dos talheres de prata e cristal. A bandeija francesa, feita à mão, refletia somente o mofo do teto velho de madeira.
    Saiu da cozinha depois de fechar a porta de seu quarto, uma despensa fora de uso. Seguiu pelo corredo, passou pela porta da pequena sala, o banheiro e chegou ao quarto. Forçou a maçaneta de metal escurecido e entrou. Seu Guilherme estava a fungar no tubo de oxigêneo admirando seu Jacaré-do-papo-amarelo, troféu empalhado da batalha. Tiro certeiro de luneta. Em cima do bote a visão é ainda mais ampla que sob a água.
    Vendo-a entrar, sentou-se na mesa colonial, Peroba brasileira, século XVII, detalhe trabalhado. Serviu-o Diana, como quem serve um filho.

    - Está quente – reclamou.
    - Vou esfriar para o senhor. Hoje está frio, achei que fosse melhor servir quente.
    - Sempre está frio aqui.

    Atendida a exigência, estando o prato segundo seu desejo, pôs-se a levantar coração por coração, exato e detalhista. Admirava, longamente e de olhar estático, como a um sacrifício. Levava-os lento à boca. Deglutia tudo sem piedade. Mesmo doente e impedido de comer qualquer coisa que se diferenciasse muito de uma sopa, Seu Guilherme não abria mão de um luxo, um trivial glamour.

    - Você já pode levar. Troque a seda da cama, quero dormir com a chinesa hoje.
    - Vou trocar. A propósito – disse já levando a bandeija porta a fora – seu filho mandou uma carta.
    - Já tenho o selo na coleção?
    - Foi o mesmo do mês passado. Quer sobremesa?
    - Um petit-gâteau do Pierre.
    - Vou tentar correr e pegar antes que fechem. O oxigêneo está bom?
    - Sim, pode ir, não preciso mais de você aqui. Depois te chamo.

    Diana saiu. Levou à cozinha os pratos e, antes de sair para a rua, parou para olhar a Planta que encimava uma lavadora de pratos, luxo já abdicado por força dos defeitos, que em aparelhos modernos surgem na mesma medida em que aumenta-lhes a tecnologia, ou talvez na proporção, cada vez mais abismal, de suas vendas. A Planta, vida amada, fora presente. Lindo presente que agora animava o lava-pratos multifuncional que não funcionava, mas que Seu Guilherme gostava de olhar.
    Ela tinha oito folhas, compridas e fortes, que vinham do útero da terra até o alto. Verde profundo, frondosa. A terra estava daquela cor negra gostosa de terra boa na chuva. O negro só ressaltava o verde. Sempre havia muita vida entorno dela. Eram besouros, formigas e joaninhas. Abelhas e até um beija-flor certa vez.
    Brotavam vivamente, num vermelho intenso, como um coração vivo e cheio de sangue, três flores. Elas brilhavam contra a tinta gasta das paredes.
    Até o vaso de barro, produto artesanal, possuia vida em cada musgo que nele crescia.
    Diana mexeu um pouco em suas folhas, deu-lha água para beber, envolvendo-se na aura de perfume que exalavam suas flores.
    Sorriu e saiu. Foi à busca da requintada sobremesa de Seu Guilherme. Lutou contra as pessoas, os carros e a fumaça. Chegando ao restaurante, pediu, pagou e agradeceu. Fez novamente a mesma jornada. Gente, carros, carros, carros, fumaça e porta.
    Tirou o petit-gâteau da embalagem, colocou-o em outra bandeija, essa menor e d'ouro, especial para essa sobremesa. Fez o delicado arranjo de talheres, todos próprios para a ocasião. Deitou água com gás em um copo e mineral noutro.
    Moveu-se sobre o assoalho barulhento e carunchoso até o quarto, para enfim encontrar Seu Guilherme retirando o dinheiro do envelope. Jogou o resto da carta fora.

    - Seu pagamento – e lançou as notas dobradas sobre a mesa.
    - Sua sobremesa está pronta.
    - Traga.

    Olhou altivo aquele doce, opulência que ostentava com o orgulho e a carência. Duas colheradas e deixou que ele padecesse na bandeija.

    Chegou a noite e as sombras da casa aproveitaram da oportunidade de espalharem-se por ela toda. Cada fresta, cada buraco ou cantinho daquela casa era tomada de sombras. Nessas ocasiões, que cada vez eram mais comuns e propícias, saiam a dominar, lentas e sutís, tudo o que lá houvesse, ou que, até mesmo, respirasse ainda.
    Diana banhou o velho senhor. Injetou a vida de plástico dos medicamentos por uma agulha em suas veias e enraizou-o, novamente, em seus tubos e fios. Pulsava aquele ventre de metal que insistia toda noite em manter vivo o feto velho e rançoso.
    Foi para o seu quarto. Vestiu o jovem corpo em um verde delicado. Sobre o ventre, livre e belo, envolveu em mistério a calcinha vermelha. Deitou na cama, leu e dormiu.

    O dia nascera, vidente que é, já natimorto. Ela acordou ainda suja das sombras da noite. Saindo de seu quarto foi até a Planta, olhou-a com carinho e caminhou como o Sol pelo assoalho. Foi até o ventre frio, onde em coma dormia Seu Guilherme. Ele, contudo, já abortado, encontrava-se enclausurado na poltrona vibratória buscando o que comprar na internet.

    - Diana, vá ao centro, quero salmão hoje.

    Foi Diana comprar o peixe, mais fácil seria tê-lo pescado. Voltando, encontrou a casa escura; e Seu Guilherme, tossindo mais tísico do que nunca, revolvendo-se como a larva que era no isopor das caixas do correio. Uma lombriga era agora aquele homem, uma gigantesca e pegajosa, de odor nausebundo, lombriga; cujos seguimento seguimentavam hora para os tubos e fios, hora para os pertences. Pousado sobre ele, sem percebê-lo, um mosquito negro de sombras sugava-lhe o que quer que pudesse haver ainda sob a pele seca.

    - Seu Guilherme, voltei. Vou preparar o peixe.
    - Faça nas panelas de pedra – vociferou com gula de tudo, em um grunhido difícil de se ouvir.

    Mas já não havia fogo naquela casa, nem luz, nem ar. Todo ele respirara o mosquito de Seu Guilherme e no lugar, flatulara sombras pesadas. Só havia o negro das paredes e a eletricidade pulsando fria e exata dentro delas. Só havia sobre o lava-pratos um vaso de flores de plástico, que exalavam sombras.
    Padeciam no lixo as flores vermelhas, que só choravam junto ao cadáver da Planta Mãe.
    Tudo naqueles cômodos morreu de frio neste dia, pois o sorriso de Diana só vertia soluços de sombras.


Matheus Victos Silva
15/11/10

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Roda-vida

Deixa a vida me levar,
Ela que me arraste.
Joga pra lá.
Puxa pra cá.
Nunca para [.] para (de) pensar.
Nem reflito, aflito.
Rumo sem (meu) rumo.
Quero sem desejar.
O que desejo, nem vejo,
Sequer conheço o que almejo.
Vivo? Respiro, como e cago.
A vida (até) vivo,
Mas só sonho [n]a realidade.



Matheus VS
26/11/10

sábado, 27 de novembro de 2010

A solidão

O vazio do quarto ecoa o silêncio em sussurros aos ouvidos. Gritos. Vi fantasmas vivos no vazio, senti quem comigo fala. O vazio. Nada. Nada. Ninguém.
Mergulhei no vazio, vi ninguém no escuro, senti o nada a caminhar. Passos fundos no fundo da alma elameada no chão do quarto, como do húmus a flor que vem ao mundo em nada e do vazio em vazio se esvai.
E vai ao longe rápido a lugar nenhum.
Finquei minhas mãos no chão e dele tirei o vazio. Bati nas paredes e vazio. Infiltrou-se nos alicerces o vazio de minha mente. Fumei o vazio e só vi fumaça sem forma, cheiro ou cor, sem nada. Névoa. Nada.

Perdi minha pele, meu cheiro e minha cor.
Perdi minha vista, minha luz e meu amor.
Perdi os sons, minha voz e meu calor.
Perdi o ar, a terra e da água fiz vapor.
Perdi a chama, minha luz.
Perdi o vazio no vazio, e terminei, terminaram-me, em nada.



Matheus VS
15/11/10

domingo, 31 de outubro de 2010

Chão de Estrelas II

31 de Outubro, feriadão.
Chuva que chove no domingão.
É 31, salário acabou.
Churrascão? Nem pensar!
Sem pão, mas fila urna voto.
Indecisão. Bomba ou torno?
Sem opção. Tiro no pé
Ou tiro na mão?
Tiro no coração.


Matheus VS
31/10/10

sábado, 16 de outubro de 2010

Ode à louça

Diante de mim uma montanha vejo
Brilha um brilho prata a criatura
Só não pode brilhar mais
Oh! Monstruoso abandono
Pois sobre ela descansa a suja e densa crosta
De comida não comida que já começa a se mover.


Matheus VS
20/07/2009