domingo, 19 de dezembro de 2010

As flores de plástico

    Terminara de colocar os talheres na bandeija junto à sopa. Sopa de miúdos, educado contorno para elevar de tripas o status dos corações de perú que lá boiavam. Exigência gastronômica que refletia-se no brilho dos talheres de prata e cristal. A bandeija francesa, feita à mão, refletia somente o mofo do teto velho de madeira.
    Saiu da cozinha depois de fechar a porta de seu quarto, uma despensa fora de uso. Seguiu pelo corredo, passou pela porta da pequena sala, o banheiro e chegou ao quarto. Forçou a maçaneta de metal escurecido e entrou. Seu Guilherme estava a fungar no tubo de oxigêneo admirando seu Jacaré-do-papo-amarelo, troféu empalhado da batalha. Tiro certeiro de luneta. Em cima do bote a visão é ainda mais ampla que sob a água.
    Vendo-a entrar, sentou-se na mesa colonial, Peroba brasileira, século XVII, detalhe trabalhado. Serviu-o Diana, como quem serve um filho.

    - Está quente – reclamou.
    - Vou esfriar para o senhor. Hoje está frio, achei que fosse melhor servir quente.
    - Sempre está frio aqui.

    Atendida a exigência, estando o prato segundo seu desejo, pôs-se a levantar coração por coração, exato e detalhista. Admirava, longamente e de olhar estático, como a um sacrifício. Levava-os lento à boca. Deglutia tudo sem piedade. Mesmo doente e impedido de comer qualquer coisa que se diferenciasse muito de uma sopa, Seu Guilherme não abria mão de um luxo, um trivial glamour.

    - Você já pode levar. Troque a seda da cama, quero dormir com a chinesa hoje.
    - Vou trocar. A propósito – disse já levando a bandeija porta a fora – seu filho mandou uma carta.
    - Já tenho o selo na coleção?
    - Foi o mesmo do mês passado. Quer sobremesa?
    - Um petit-gâteau do Pierre.
    - Vou tentar correr e pegar antes que fechem. O oxigêneo está bom?
    - Sim, pode ir, não preciso mais de você aqui. Depois te chamo.

    Diana saiu. Levou à cozinha os pratos e, antes de sair para a rua, parou para olhar a Planta que encimava uma lavadora de pratos, luxo já abdicado por força dos defeitos, que em aparelhos modernos surgem na mesma medida em que aumenta-lhes a tecnologia, ou talvez na proporção, cada vez mais abismal, de suas vendas. A Planta, vida amada, fora presente. Lindo presente que agora animava o lava-pratos multifuncional que não funcionava, mas que Seu Guilherme gostava de olhar.
    Ela tinha oito folhas, compridas e fortes, que vinham do útero da terra até o alto. Verde profundo, frondosa. A terra estava daquela cor negra gostosa de terra boa na chuva. O negro só ressaltava o verde. Sempre havia muita vida entorno dela. Eram besouros, formigas e joaninhas. Abelhas e até um beija-flor certa vez.
    Brotavam vivamente, num vermelho intenso, como um coração vivo e cheio de sangue, três flores. Elas brilhavam contra a tinta gasta das paredes.
    Até o vaso de barro, produto artesanal, possuia vida em cada musgo que nele crescia.
    Diana mexeu um pouco em suas folhas, deu-lha água para beber, envolvendo-se na aura de perfume que exalavam suas flores.
    Sorriu e saiu. Foi à busca da requintada sobremesa de Seu Guilherme. Lutou contra as pessoas, os carros e a fumaça. Chegando ao restaurante, pediu, pagou e agradeceu. Fez novamente a mesma jornada. Gente, carros, carros, carros, fumaça e porta.
    Tirou o petit-gâteau da embalagem, colocou-o em outra bandeija, essa menor e d'ouro, especial para essa sobremesa. Fez o delicado arranjo de talheres, todos próprios para a ocasião. Deitou água com gás em um copo e mineral noutro.
    Moveu-se sobre o assoalho barulhento e carunchoso até o quarto, para enfim encontrar Seu Guilherme retirando o dinheiro do envelope. Jogou o resto da carta fora.

    - Seu pagamento – e lançou as notas dobradas sobre a mesa.
    - Sua sobremesa está pronta.
    - Traga.

    Olhou altivo aquele doce, opulência que ostentava com o orgulho e a carência. Duas colheradas e deixou que ele padecesse na bandeija.

    Chegou a noite e as sombras da casa aproveitaram da oportunidade de espalharem-se por ela toda. Cada fresta, cada buraco ou cantinho daquela casa era tomada de sombras. Nessas ocasiões, que cada vez eram mais comuns e propícias, saiam a dominar, lentas e sutís, tudo o que lá houvesse, ou que, até mesmo, respirasse ainda.
    Diana banhou o velho senhor. Injetou a vida de plástico dos medicamentos por uma agulha em suas veias e enraizou-o, novamente, em seus tubos e fios. Pulsava aquele ventre de metal que insistia toda noite em manter vivo o feto velho e rançoso.
    Foi para o seu quarto. Vestiu o jovem corpo em um verde delicado. Sobre o ventre, livre e belo, envolveu em mistério a calcinha vermelha. Deitou na cama, leu e dormiu.

    O dia nascera, vidente que é, já natimorto. Ela acordou ainda suja das sombras da noite. Saindo de seu quarto foi até a Planta, olhou-a com carinho e caminhou como o Sol pelo assoalho. Foi até o ventre frio, onde em coma dormia Seu Guilherme. Ele, contudo, já abortado, encontrava-se enclausurado na poltrona vibratória buscando o que comprar na internet.

    - Diana, vá ao centro, quero salmão hoje.

    Foi Diana comprar o peixe, mais fácil seria tê-lo pescado. Voltando, encontrou a casa escura; e Seu Guilherme, tossindo mais tísico do que nunca, revolvendo-se como a larva que era no isopor das caixas do correio. Uma lombriga era agora aquele homem, uma gigantesca e pegajosa, de odor nausebundo, lombriga; cujos seguimento seguimentavam hora para os tubos e fios, hora para os pertences. Pousado sobre ele, sem percebê-lo, um mosquito negro de sombras sugava-lhe o que quer que pudesse haver ainda sob a pele seca.

    - Seu Guilherme, voltei. Vou preparar o peixe.
    - Faça nas panelas de pedra – vociferou com gula de tudo, em um grunhido difícil de se ouvir.

    Mas já não havia fogo naquela casa, nem luz, nem ar. Todo ele respirara o mosquito de Seu Guilherme e no lugar, flatulara sombras pesadas. Só havia o negro das paredes e a eletricidade pulsando fria e exata dentro delas. Só havia sobre o lava-pratos um vaso de flores de plástico, que exalavam sombras.
    Padeciam no lixo as flores vermelhas, que só choravam junto ao cadáver da Planta Mãe.
    Tudo naqueles cômodos morreu de frio neste dia, pois o sorriso de Diana só vertia soluços de sombras.


Matheus Victos Silva
15/11/10

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Roda-vida

Deixa a vida me levar,
Ela que me arraste.
Joga pra lá.
Puxa pra cá.
Nunca para [.] para (de) pensar.
Nem reflito, aflito.
Rumo sem (meu) rumo.
Quero sem desejar.
O que desejo, nem vejo,
Sequer conheço o que almejo.
Vivo? Respiro, como e cago.
A vida (até) vivo,
Mas só sonho [n]a realidade.



Matheus VS
26/11/10

sábado, 27 de novembro de 2010

A solidão

O vazio do quarto ecoa o silêncio em sussurros aos ouvidos. Gritos. Vi fantasmas vivos no vazio, senti quem comigo fala. O vazio. Nada. Nada. Ninguém.
Mergulhei no vazio, vi ninguém no escuro, senti o nada a caminhar. Passos fundos no fundo da alma elameada no chão do quarto, como do húmus a flor que vem ao mundo em nada e do vazio em vazio se esvai.
E vai ao longe rápido a lugar nenhum.
Finquei minhas mãos no chão e dele tirei o vazio. Bati nas paredes e vazio. Infiltrou-se nos alicerces o vazio de minha mente. Fumei o vazio e só vi fumaça sem forma, cheiro ou cor, sem nada. Névoa. Nada.

Perdi minha pele, meu cheiro e minha cor.
Perdi minha vista, minha luz e meu amor.
Perdi os sons, minha voz e meu calor.
Perdi o ar, a terra e da água fiz vapor.
Perdi a chama, minha luz.
Perdi o vazio no vazio, e terminei, terminaram-me, em nada.



Matheus VS
15/11/10

domingo, 31 de outubro de 2010

Chão de Estrelas II

31 de Outubro, feriadão.
Chuva que chove no domingão.
É 31, salário acabou.
Churrascão? Nem pensar!
Sem pão, mas fila urna voto.
Indecisão. Bomba ou torno?
Sem opção. Tiro no pé
Ou tiro na mão?
Tiro no coração.


Matheus VS
31/10/10

sábado, 16 de outubro de 2010

Ode à louça

Diante de mim uma montanha vejo
Brilha um brilho prata a criatura
Só não pode brilhar mais
Oh! Monstruoso abandono
Pois sobre ela descansa a suja e densa crosta
De comida não comida que já começa a se mover.


Matheus VS
20/07/2009

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sina

   Dormem dóceis sob o solo as cigarras, que em seu sono à sete anos de paz, silencioso sossego dos monges, semeiam o momento justo de sair à luz.
   Rompem a rústica terra os reféns que lá residiram em respeitosa paciência, rasgando o útero de pedra encharcada d'água. Buracos de um parto à própria força.
  E saindo ao dia já impacientes as cigarras, ditas singelas, gritam incessantemente seu hino ígneo em sítios inflamados. Incríveis sinfonias em ode à vida.

   Sina feliz daqueles que nascem somente para celebrar sua união.


Matheus VS
08/10/10

domingo, 3 de outubro de 2010

Chão de Estrelas

3 de Outubro, nem Carnaval, nem natal.
Domingão. Chuvão, sem churrasco.
É 3, salário? Não, muito cedo.
Ah, votação! Enrolação.
Pão fila urna voto.
Democracia? Não, é só papel no chão.
Sujeira, bagunça, baderna.
Quem jogou? Nunca sei.
Quem limpa? Alguém que come a um salário mínimo.
Já recebeu? Não, ainda é dia 3.

Matheus VS
3 de Outubro de 2010

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Vida Crônica

    O chão estava todo molhado. Choveu a noite toda e também pela manha, já há algum tempo que não se via o Sol. Ela estava lá caída, agonizando sobre o cimento molhado. Fazia frio. Aproximei-me e fique olhando-a, seus olhos já não transmitiam sentimento, era só um contemplar da alma perante o mundo; o mundo que se esvaia perante ela, ou ela que dele se retirava.
    Fosse como fosse, toquei-a e ela moveu-se. Como resurgindo em sua agonia e segurando tudo o quanto podia-lhe ajudar a escapar das mãos da morte, ela moveu-se. Balançou todo o corpo, arquejou-se firme. Tentava segurar-se em mim. Balancei-me também e a ela estendi a mão; agarrou-se tranquila; tranquila, sim, de não estar sozinha.
    E sozinha não a deixaria eu, jamais. Jamais deixaria eu viv'alma, que como a minha pulsa no corpo e no mundo. Olhou-me ela. Já não vi nesse olhar o vazio, mas um espelho. Não olhei nessa vista esperança, mas profundidade.
    Vi o que vi, porque olhei nesse olhar o que deveria olhar para ver; e enxerguei, por essa vista, todos os olhares; e deixei-me cair nessa amplitude longínqua daquele pequeno círculo negro.
   Senti a Vida, que se movia silenciosa à minha volta; cada árvore que suas raízes fincava no chão firme, que firme é porque lhe fincam raízes, que do contrário seria só pedra e pó nas águas e nos ventos.
   Senti a Morte, que se esqueirava por entre tudo, cada alma que ceifava, à Vida entregava, que viva é porque lhe matam. Vi na morte o nascimento.
    Nada mais pude fazer por ela, senão dar-lhe uma carícia, deixá-la confortável no chão e sobre ela despender todo o peso dos meus pés; por que haveria de ser doloroso o recomeço do Círculo? Desculpe a Morte por tomar-lhe a foice das mãos, mas também ela merece descanso do choro, olha o mundo por uma vez sem verter-te lágrimas. Esmaguei a Cigarra no cimento molhado.

Matheus VS
29 de Setembro de 2010



domingo, 26 de setembro de 2010

Abertura

   Uso deste espaço, e expurgo o papel, para lançar ao mundo o que primeiro lancei à ele. Do que dou à luz reservo esse canto, palavra por palavra, e torno público e vivo o grito que ecoa em meu espírito. Faço da ideia, verbo e do verbo, matéria. Da matéria à eletricidade ou luz e novamente à ideia, nova, transformada. Trasforma tu o que formei. Destrói e descontrói tudo aquilo que cá ergui e forma deste pó cada tijolo, cada vidraça e telha novas. A torre é algo que sempre cresce para cima.
   Expresso-me, abro-me, grito e escancaro em nudez desavergonhada diante dos teus olhos meu espírito. Faço de qualquer um confessor de minhas impressões e guardião de minhas letras. Pouco me importa você, que vem e olha ou que simplesmente vai embora, ou que talvez nem venha. Também não me importa você que fica e olha, o que vê agora depende de você para ter imagem e som. Recupera o signo que escondo.
   Quero que grite para mim, grite comigo e fala tudo quanto a fala lhe permite. Abro a torre de marfim pro mundo, faço da sacra princesa uma meretriz, e só lhe digo...

"Cuidado onde pisas, cada negra pedra sólida deste chão depende de tu para formar caminho. Nem sempre as portas para as quais te levam serão quartos conhecidos de ares agradáveis. Mas se tiveres nos olhos o Sol e em cada mão Lua Nova e Lua Cheia, te fazes deus em meus domínios."