quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Vida Crônica

    O chão estava todo molhado. Choveu a noite toda e também pela manha, já há algum tempo que não se via o Sol. Ela estava lá caída, agonizando sobre o cimento molhado. Fazia frio. Aproximei-me e fique olhando-a, seus olhos já não transmitiam sentimento, era só um contemplar da alma perante o mundo; o mundo que se esvaia perante ela, ou ela que dele se retirava.
    Fosse como fosse, toquei-a e ela moveu-se. Como resurgindo em sua agonia e segurando tudo o quanto podia-lhe ajudar a escapar das mãos da morte, ela moveu-se. Balançou todo o corpo, arquejou-se firme. Tentava segurar-se em mim. Balancei-me também e a ela estendi a mão; agarrou-se tranquila; tranquila, sim, de não estar sozinha.
    E sozinha não a deixaria eu, jamais. Jamais deixaria eu viv'alma, que como a minha pulsa no corpo e no mundo. Olhou-me ela. Já não vi nesse olhar o vazio, mas um espelho. Não olhei nessa vista esperança, mas profundidade.
    Vi o que vi, porque olhei nesse olhar o que deveria olhar para ver; e enxerguei, por essa vista, todos os olhares; e deixei-me cair nessa amplitude longínqua daquele pequeno círculo negro.
   Senti a Vida, que se movia silenciosa à minha volta; cada árvore que suas raízes fincava no chão firme, que firme é porque lhe fincam raízes, que do contrário seria só pedra e pó nas águas e nos ventos.
   Senti a Morte, que se esqueirava por entre tudo, cada alma que ceifava, à Vida entregava, que viva é porque lhe matam. Vi na morte o nascimento.
    Nada mais pude fazer por ela, senão dar-lhe uma carícia, deixá-la confortável no chão e sobre ela despender todo o peso dos meus pés; por que haveria de ser doloroso o recomeço do Círculo? Desculpe a Morte por tomar-lhe a foice das mãos, mas também ela merece descanso do choro, olha o mundo por uma vez sem verter-te lágrimas. Esmaguei a Cigarra no cimento molhado.

Matheus VS
29 de Setembro de 2010



domingo, 26 de setembro de 2010

Abertura

   Uso deste espaço, e expurgo o papel, para lançar ao mundo o que primeiro lancei à ele. Do que dou à luz reservo esse canto, palavra por palavra, e torno público e vivo o grito que ecoa em meu espírito. Faço da ideia, verbo e do verbo, matéria. Da matéria à eletricidade ou luz e novamente à ideia, nova, transformada. Trasforma tu o que formei. Destrói e descontrói tudo aquilo que cá ergui e forma deste pó cada tijolo, cada vidraça e telha novas. A torre é algo que sempre cresce para cima.
   Expresso-me, abro-me, grito e escancaro em nudez desavergonhada diante dos teus olhos meu espírito. Faço de qualquer um confessor de minhas impressões e guardião de minhas letras. Pouco me importa você, que vem e olha ou que simplesmente vai embora, ou que talvez nem venha. Também não me importa você que fica e olha, o que vê agora depende de você para ter imagem e som. Recupera o signo que escondo.
   Quero que grite para mim, grite comigo e fala tudo quanto a fala lhe permite. Abro a torre de marfim pro mundo, faço da sacra princesa uma meretriz, e só lhe digo...

"Cuidado onde pisas, cada negra pedra sólida deste chão depende de tu para formar caminho. Nem sempre as portas para as quais te levam serão quartos conhecidos de ares agradáveis. Mas se tiveres nos olhos o Sol e em cada mão Lua Nova e Lua Cheia, te fazes deus em meus domínios."